As barreiras da costa Pataxó

Os olhos buscam no horizonte, sinais de terra. A poucas milhas do litoral, a costa é baixa e os raros acidentes geográficos, deixam transparecer a proximidade do continente. 

De perto, uma faixa firme e contínua com tons ocres e coberta de matas, começa a se delinear: são as “barreiras”, que Pero Vaz de Caminha descreveu ao rei de Portugal em 1500, durante a invasão portuguesa no sul da Bahia.

Vista da praia as “barreiras” são imponentes. As escarpas sedimentares íngremes, com cerca de 20 metros de altura, criam uma muralha quase intransponível. Ela só pode ser vencida em poucos trechos, onde os rios descem do altiplano costeiro e chegam ao mar. 

A aparência é singular. As cores terrosas ao longe, dão lugar a uma miríade de estratos multicoloridos, variando do branco ao vermelho escuro, passando pelo cinza, bege e tons do marrom.

Aos olhos treinados de um geólogo, as escarpas e seus pequenos segredos, escritos em grãos de areia, seixos de rios e fósseis, contam uma história dramática, de milhões de anos atrás, quando as capas de gelo da Antártica e da Groenlândia estavam se formando. Isso deixou nesta parte do mundo o clima mais seco, semi-árido, dominado por savanas e animais bizarros.

Essas formações geológicas são hoje conhecidas no jargão científico como “Grupo Barreiras” ou simplesmente “Barreiras”, um conjunto de sedimentos e rochas formadas por rios e enxurradas que desciam as encostas dos morros depositando areia, cascalho e lama, durante as cheias dos rios. 

Após a sua formação, o Grupo Barreiras resistiu às forças naturais do planeta por quase dois milhões e meio de anos. Ao final da última era glacial, há cerca de 11 mil anos, o aquecimento contínuo da atmosfera terrestre fez com que as capas de gelo polares e das altas montanhas começassem a degelar. Com isso o nível dos oceanos do mundo subiu lentamente e criou frentes de erosão marinha (as falésias), que progressivamente recuaram em direção ao continente. 

As mudanças climáticas nos últimos milhares de anos, fizeram com que as savanas ficassem no interior do Brasil e as florestas úmidas avançassem em direção ao sul, criando uma conexão entre a Amazônia e a floresta Atlântica. E foi justamente no sul da Bahia, que essa conexão atingiu o seu clímax. As condições ideais de clima, os solos e a abundância de água, permitiram uma riquíssima mistura de espécies vegetais, formando a hileia baiana, um recorte único da Mata Atlântica, que guarda similaridades e coincidências com a floresta Amazônia. Sobre o altiplano costeiro do Barreiras, outros subtipos da Mata Atlântica floresceram, como a floresta de tabuleiro, riquíssima em palmeiras e ciṕos e a Mussununga, um ecossistema semelhante às restingas, mas localizado em maiores altitudes. 

Neste ínterim, levas migratórias trouxeram ao Brasil povos nômades, através da Ásia e da América do Norte. Eles se estabeleceram no território e a sua cultura floresceu, adaptada às mudanças climáticas e ambientais que o planeta emprendia aqui. Se pudéssemos voltar no tempo, há cerca de onze mil anos, veríamos os ancestrais dos pataxós -a etnia que hoje vive no território- caçando mastodontes sobre o altiplano costeiro do Barreiras e tentando proteger suas crianças de tigres-dente-de-sabre. Mais tarde, por volta de oito mil anos, eles se adaptariam de forma harmoniosa às florestas densas próximas ao litoral, coletando frutos e mariscos, pescando e, mais tarde, em tempos históricos, construindo suas aldeias. 

Essa forma de viver, de respeito e adaptação ao território, perdurou até quinhentos anos atrás. A invasão portuguesa trouxe a cruz e a espada. Os indígenas, dizimados por doenças e pela brutalidade do homem branco, chegaram ao século XX resistindo aos apelos da sociedade capitalista e às pressões territoriais do coronelismo, herdado das capitanias hereditárias. Após um massacre na “Aldeia mãe”, próxima ao Monte Pascoal, na década de 50 do século XX, os Pataxós, legítimos herdeiros do território, iniciam sua diáspora pelo extremo-sul da Bahia.

Apesar dos cinco séculos de ciclos exploratórios do invasor branco, a floresta se regenera nos locais onde foi destruída. A hileia Baiana ficou intocada nas regiões de difícil acesso. 

A segunda leva de destruição chega com a BR-101, nas décadas de 70 e 80. Mais floresta vem abaixo para retirada de madeira. Nesse período, chegam na região de Porto Seguro, famílias vindas do sudeste e jovens em busca de uma vida alternativa, em contato com a natureza e com o mar. Os novos moradores trazem também dinheiro. As famílias nativas, acostumadas a viver com o pouco que o território fornece, subitamente recebem estímulos financeiros para vender as suas propriedades à beira-mar e nas regiões mais nobres. Começa uma nova fase de destruição: a expansão urbana e a especulação imobiliária. Os forasteiros que chegaram detém as melhores terras, as melhores áreas, o poder econômico.

Nos anos 90 e meados do século 21, Porto Seguro e região se torna um dos principais atrativos turísticos do Brasil. Todos querem conhecer, todos querem morar no paraíso. A população nativa é empurrada para as periferias, à medida que novos loteamentos e bairros vão sendo abertos – mais floresta é derrubada.

Como reflexo de políticas do governo federal, que garantiu o direito à terra, ainda nos anos 90, o povo pataxó voltou a se aldear. Surgem as aldeias da Jaqueira, a Aldeia Velha e tantas outras que resgatam a dignidade dos herdeiros legítimos do território. Com elas, grandes áreas de vegetação nativa têm  a sua sobrevivência garantida. 

A especulação imobiliária avança na segunda e terceira década do século 21. Porto Seguro se torna um atrativo também para estrangeiros, trazendo mais dinheiro e oportunidades de negócios. Hoteis, condomínios, loteamentos, pousadas. Parte da orla marítima fica completamente ocupada em Arraial D’Ajuda, a ponto de não se ver o mar. Ao longo das falésias, o  trecho estreito de praia impede a ocupação. Mas ainda há o alto do altiplano costeiro, oferecendo uma vista grandiosa. 

O forasteiro que antes trazia a espada e a cruz, agora, miscigenado nesse caldo cultural e étnico,  traz o ópio do divertimento barato, do exibicionismo, do hedonismo. A sociedade brasileira em sua grande parte alienada, se deixa ludibriar por esses valores e valida a destruição. O indígena, a terra, a floresta não importam. O importante é o dinheiro, o desenvolvimento. Os hoteis e loteamentos avançam, a destruição parece não ter fim. Sítios arqueológicos são descobertos e destruídos. Poucos são registrados. A herança do território esquecida. 

O futuro é incerto. A expansão urbana pede água e aqui, ela é extraída da terra, dos mananciais subterrâneos do Barreiras. A água precisa da floresta para ser mantida. A floresta precisa do solo do Barreiras, das abelhas, dos morcegos, dos animais da floresta de tabuleiro, da Mussununga e da hileia baiana. As mudanças climáticas acentuaram os eventos extremos e catastróficos. Sem a floresta, não existe água, proteção contra os ventos e contra as chuvas extremas. A equação é simples, mas pouca gente entende (ou, propositalmente, finge não entender). 

É inadmissível que em poucas décadas, a ganância destrua um território que se desenvolveu durante milhões de anos.  É preciso resgatar o passado remoto e a sabedoria dos povos tradicionais, para, talvez, termos um futuro.

Texto: Caio Vinícius Gabrig Turbay – Geologo e professor da UFSB – Universidade federal Sul da Bahia
Imagens extraídas da internet com intenção meramente ilustrativa.

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