
O caminho é curto, cerca de trezentos metros sob a sombra de grandes árvores. O dossel pode atingir facilmente, quinze, vinte metros de altura. Nos galhos grossos que se lançam para os lados, bromélias pairam majestosas. Os raios do sol matutino rompem o escudo verde e se projetam até o chão, iluminando os rastros que as formigas cortadeiras deixaram durante a noite. Saltando entre as árvores, dois guigós, um tipo macaco raro e ameaçado da Mata Atlântica, espreitam e emitem gritos curiosos, avisando seus companheiros de bando sobre a presença de intrusos. De repente um som ruidoso irrompe a calmaria da mata. Mais à frente, no entroncamento com uma estrada empoeirada e mal conservada, um grupo de turistas em quadriciclos pára e observa o chão. Algo chama a atenção deles: uma preguiça insólita, tentando chegar rapidamente à mata do outro lado da estrada, se esgueira entre entulhos de obra e o lixo espalhado pelo caminho. Estou na Trilha Ecológica, um dos acessos que ligam o centro de Arraial D’Ajuda a um de seus bairros novos, conhecido como Alto da Pitinga.
A cena insólita da preguiça na estrada, não é incomum em Arraial D’Ajuda. Apesar de curiosa, topar com preguiças, cachorros-do-mato, veados ou até mesmo onças pardas, em locais fortemente impactados pelo homem, não são sinais de natureza intocada como muitos pensam, mas um forte indício de que esses animais estão sendo despejados de suas casas e tentam viver e se mover entre fragmentos florestais cada vez menores!
Arraial D’Ajuda, distrito de Porto Seguro, BA, tem presenciado na última década o forte avanço na derrubada de suas matas, devido principalmente à expansão urbana. Quem conhece e frequenta a região, percebe o avanço do desmatamento em curtos intervalos de tempo. O fenômeno atualmente acontece por conta da abertura de novos bairros, além da construção de condomínios de luxo ou mesmo invasões de terras, como a que aconteceu no ano de 2020, entre os bairros Villas do Arraial e Alto da Pitinga. Com isso, áreas enormes, com dezenas ou mesmo centenas de hectares, foram derrubadas, não só no distrito, mas em todo o município de Porto Seguro.

Entre os anos de 1985 e 2015, a Bahia ocupou o terceiro lugar no ranking da derrubada de Mata Atlântica no país, atrás apenas do Rio de Janeiro e Paraná. De acordo com a organização não governamental SOS Mata Atlântica, a cobertura florestal atual no estado corresponde apenas a 11% da original. Já a cidade de Porto Seguro, conta atualmente com apenas 30% da sua cobertura original de Mata Atlântica. Isso equivale a quase 74.500 hectares de área desmatada ou quase 100 mil campos de futebol (um hectare corresponde a uma área de 10.000 metros quadrados, quase a mesma medida de um campo de futebol).
A derrubada das florestas em Porto Seguro passou por altos e baixos nas últimas duas décadas. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), mostram que houve uma redução significativa entre os anos de 2005 e 2010, baixando de 524 hectares para 57 ao final deste período. No entanto, entre 2015 e 2018, os números voltaram a crescer rapidamente e até 2020, uma área de 1342 hectares de florestas ou o equivalente a 134 campos de futebol foram destruídos, um aumento por volta de 1000% a mais, comparado ao quinquênio anterior. Neste mesmo período ocorreu uma série de medidas no âmbito do poder executivo federal de enfraquecimento de políticas ambientais, como o afrouxamento de leis, além do desmonte de órgãos de monitoramento, proteção e fiscalização ambiental.
Apesar dos inúmeros períodos de exploração na Mata Atlântica, como no ciclo do Pau-Brasil no período pré-colonial, ou na abertura de lavouras de cana-de-açúcar e café em tempos coloniais, muitos áreas com florestas no sul da Bahia ainda guardam características de matas virgens, pouco modificadas pelo homem. A história do desmatamento recente no sul da Bahia remonta à década de 70 do século passado. Naquela época, inúmeras serrarias de madeira se instalaram na cidade de Eunápolis e passaram a receber as toras das grandes árvores, cortadas em Caraíva, Trancoso, Arraial D’Ajuda, Corumbau. É o que conta Cacique Ipê, liderança indígena, ativista social e ambiental: “Em 78, aqui na região, o pessoal das madeireiras colocou muitas serrarias. Essa região aqui, tudo era mata, de Eunápolis, Caraíva, Barra Velha…Os madeireiros acabaram com tudo! Eles instalavam as serrarias em Eunápolis, mas pegavam madeira aqui na região…”.
As áreas devastadas pelas madeireiras, por sua vez, abriram espaço para a pecuária e outras atividades agrícolas. Este ciclo perdurou até o início dos anos 90, quando então começou a crescer a especulação imobiliária na região, que explodiu a partir dos anos 2000.
Quem chega ao centro urbano de Arraial D’Ajuda, vindo de Eunápolis ou Trancoso, percebe em um dos lados da estrada a forte pressão da expansão do crescimento da cidade e do desmatamento. Do outro lado, uma grande área de floresta ainda se mantém em pé: a reserva indígena da Aldeia Velha, criada no início dos anos 90 e que hoje está novalente ameaçada. Em 93, Ipê reuniu no local um grupo de indígenas para iniciar o povoamento das terras. A primeira tentativa de ocupação foi rechaçada pelo antigo dono, com a ajuda da polícia. Muitas famílias desistiram, mas Ipê não. Ele conta que reuniu um novo grupo em 98 e empreendeu outra ocupação. Munido de provas, Ipê mostrou que no passado a área já era ocupada por indígenas. Com isso a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), conseguiu provisoriamente permitir que muitas das famílias indígenas não aldeadas que estavam espalhadas pela região, tivessem um local para se reunir. Para Ipê, o processo foi fundamental no resgate das raízes e tradições culturais dos Pataxó da região.
Ele fala com orgulho do seu trabalho e enfatiza que, se não fosse a ocupação da Aldeia Velha, a área florestal preservada já teria se transformado em um novo bairro: “Não tem tanto tempo. Esses bairros que tem aí, todos eram mata, entendeu? E aí, foram entrando e fazendo rua, loteando…Aqui se não somos nós que estamos, já tinha acabado tudo!”.
Hoje, Ipê realiza um trabalho social e ambiental com os moradores e crianças da aldeia. Na sabedoria das suas tradições, ele entende e multiplica os conhecimentos sobre as relações que a floresta possui com a manutenção da água e a importância para a sobrevivência humana.

Imagem: Acervo Verdejar d’Ajuda
Fernando Azevedo, ambientalista e empreendedor em Arraial D’Ajuda, usou muitas das espécies de madeiras da Mata Atlântica em seus projetos de arquitetura. Paulistano de nascimento, chegou na região em 76, então com 22 anos. Durante a sua trajetória profissional, havia sempre a inquietação e a cobrança pessoal com relação à madeira usada nos seus projetos. Começou então a produzir mudas de árvores e a plantá-las. Mais tarde, a necessidade de conhecer a fundo as espécies que reproduzia no viveiro em seu quintal, o levou a procurar o Pataxó Pedro Borges, um lavrador de madeira e profundo conhecedor das matas locais. Pedro fez de Fernando seu aprendiz e passou para ele um riquíssimo acervo de conhecimentos sobre as árvores.
Conversar com Fernando é uma aula de ecologia. Ele chama atenção para algo novo que está acontecendo nas florestas de Arraial: “...Essas árvores estão se extinguindo! Então, a gente pode plantar árvores preciosas que não estão conseguindo se reproduzir na mata alterada…Já tá muito alterado! Por exemplo, se eu for num remanescente de Mata Atlântica aqui, se eu for debaixo de um pé de amescla, tem centenas de filhotinhos. Você vai debaixo de um pé de Pequi, não tem nenhum. Vai debaixo de um pé de Ibiruçu, você não vê! Aquariquara, não tem nenhum filhote…”. Nas suas reflexões, Fernando conta que o motivo disso está na redução de espécies de animais polinizadores, como as abelhas, ou mesmo dispersores de sementes, como morcegos e pequenos mamíferos. Sem esses animais, as plantas não conseguem fazer o cruzamento para a reprodução ou espalhar as suas sementes. Essa constatação, de certa forma é alarmante, pois mostra que a regeneração das florestas não depende exclusivamente da reprodução de mudas e plantio de árvores. A teia ecológica é complexa e nosso conhecimento científico apenas arranha a superfície do emaranhado de interações entre espécies animais, vegetais, solo, rocha, ar e água.As histórias contadas por moradores mostram que a expansão urbana em Arraial passou por períodos distintos. Nos anos 70 e 80, muitas famílias nativas da região ocupavam a faixa costeira e o centro histórico. Nessa época, Arraial ainda era um destino turístico pouco conhecido dos brasileiros. Alguns dos visitantes que chegaram, se encantaram pelo lugar e acabaram ficando. Lentamente, até os anos 90, novos moradores com melhor poder aquisitivo, foram comprando e ocupando as áreas mais nobres do distrito, como o centro histórico, a faixa costeira e as partes altas no alto das falésias, mais próximas ao mar. Com isso, os nativos foram lentamente migrando para as periferias. À medida que a população crescia, aumentava a necessidade de terras para moradia e também o desmatamento.
Progressivamente foi havendo procura de imóveis por pessoas que chegavam, vindas principalmente do sudeste. Começam a surgir os condomínios, os grandes empreendimentos e também as ocupações de terras. Os anos 2000 foram divisores de água, conta o Vereador e advogado Vinícius Parracho, um dos filhos de Arraial D’Ajuda. Ele diz que até os anos 90 era comum que os moradores se deslocarem entre os lugares através de trilhas pela mata. Nas décadas seguintes houve um aumento considerável na abertura de novas áreas e vias de acesso, transformando o cenário urbano e natural. Com isso, o lugar cresceu e perdeu muito do encanto e do ar bucólico que ainda persistem e atrai as pessoas.

No entanto, a natureza, que ainda é o maior patrimônio de Porto Seguro e o principal atrativo da Arraial D’Ajuda, parece estar seriamente ameaçada. As praias e florestas, panos de fundo de campanhas de marketing para o turismo e de vendas em grandes empreendimentos imobiliários, são por outro lado progressivamente destruídas e reduzidas. Ano após ano, um número crescente de pessoas que sonham em ter um espaço para viver em contato com a natureza ou simplesmente para investir, aumentam a demanda por terras. Com isso, a orla de Arraial foi totalmente ocupada a ponto de não se ver o oceano ao passar pelas ruas à beira mar. Nas porções altas, acima das falésias, muros altos e áreas intensamente ocupadas vão compondo um mosaico de pequenas e grandes casas de luxo, piscinas, hotéis, onde antes havia dezenas de hectares de bosques e grandes árvores. De um lado, empreendedores que, por flexibilização de leis e a conivência do estado, conseguiam áreas cada vez maiores para desmatar e criar condomínios de luxo. De outro, especuladores, investidores ou simplesmente pessoas que compraram o sonho da casa na praia. Espremida nas periferias, a população de baixa renda, à procura de espaço para se estabelecer, faz tentativas de ocupação de grandes áreas, seguidas da derrubada de florestas. Algumas dessas áreas, como a fazenda Tropa Costeira, reconhecida por alguns como terra devoluta, entram num complexo imbróglio entre a justiça, grileiros dizem ter sua posse e famílias à procura de espaço para se assentar. Os problemas não param por aí. A crescente expansão do mercado imobiliário e a demanda por recursos naturais, principalmente águas subterrâneas criam uma equação difícil de ser resolvida. A quantidade de lixo e entulhos de obras sem destinação apropriada e espalhados a ermo pelo distrito, além de uma redução significativa no regime hídrico regional parecem formar a tempestade perfeita para gestores e entidades públicas que terão de lidar com esses problemas em um futuro próximo.
Na contramão deste cenário de certa forma distópico, Arraial D’Ajuda ainda é cercada por um mosaico de grandes áreas preservadas e protegidas, como o Parque Nacional do Pau-Brasil, a Reserva Biológica do Rio dos Frades e outras pequenas unidades de conservação particulares, conhecidas como RPPNs (reservas particulares do patrimônio natural), além da mata da Aldeia Velha. Esses locais garantem refúgio e proteção para os animais silvestres da região que lentamente vão abandonando as áreas mais impactadas. Um trabalho recente envolvendo um consórcio de universidades no Brasil, entre elas a Universidade Federal do Sul da Bahia, mostrou que os vários fragmentos de florestas ainda abrigam uma rica diversidade de mamíferos, incluindo animais de grande porte, como o cervo, a capivara, a anta e até mesmo grandes predadores, com a onça pintada e a onça parda.

Por outro lado, surgem iniciativas de pessoas e entidades que lutam para equacionar e reduzir os problemas relacionados ao desmatamento das áreas não protegidas e a destruição dos recursos naturais de Arraial D’Ajuda. É o caso da ONG Verdejar D’Ajuda, uma associação sem fins lucrativos que nasceu do sonho de alguns moradores em plantar um milhão de árvores na região. O foco atual das atividades da ONG está no Parque Central, uma enorme área de propriedade da união, encravada no coração urbano do distrito. O “Verdejar”, como é conhecido, começou seus trabalhos de forma discreta, recebendo doações para a compra de insumos e pagamento de mão de obra na produção e o plantio de mudas de árvores de espécies nativas. Recentemente a associação ganhou o seu reconhecimento como pessoa jurídica e já iniciou projetos relevantes, com produção e plantio de mudas, capacitação de pessoas e educação ambiental.
Vinícius Parracho, após empreender esforços locais com amigos, viu na política o caminho mais efetivo e rápido para lutar pelas pautas ambientais que acredita. Com o contagiante idealismo da juventude, Iniciando seu primeiro mandato como Vereador em 2021, ele e sua equipe já propuseram quase uma dezena de leis relacionadas à gestão ambiental no município, algumas já implementadas. Uma das propostas de projeto pensadas, juntamente com Fernando Azevedo, é o Selo de Imunidade para as grandes árvores na região. Com o atestado de saúde e segurança às pessoas dada por técnicos, essas árvores ficariam protegidas do corte. A ideia é garantir a proteção delas, recebendo os seus serviços ecossistêmicos, ou melhor dizendo, os benefícios ambientais, sociais e até econômicos que elas podem trazer para as pessoas e principalmente, um riquíssimo banco de sementes para produção de mudas.

Nas andanças à procura dessas sementes, Fernando Azevedo teve a ideia de mapear e inventariar as grandes árvores. Surgiu assim o projeto “As Gigantes do Arraial”. A experiência de Fernando com as árvores se tornou tamanha, que hoje ele conhece uma a uma das muitas das gigantes e se tornou referência até mesmo para cientistas que visitam a região. Ele consegue identificar uma espécie na mata, mesmo sem ver a copa e suas folhas, apenas pela aparência da casca no tronco. Andando com Fernando no seu viveiro, esgueirando-se entre pequenas árvores, bromélias, ele fala dos nomes científicos e populares de árvores. Com um grande sorriso estampado no rosto, mostra um conjunto de mudinhas separadas para serem plantadas por crianças no Parque Central na manhã seguinte, quando será comemorado o Dia Mundial da Limpeza.
Encontro Fernando no Parque Central na manhã ensolarada de 18 de setembro. Uma pequena multidão trabalha como formiguinhas em uma área um pouco maior do que um hectare. Em um canto, próximo à rua, um grupo separa e pesa o lixo coletado. Metais, plástico, vidros e papel são cuidadosamente armazenados em sacolas grandes e enviados para a reciclagem. No outro canto, uma parte das mudinhas de Fernando já está plantada. Ele gesticula, aponta para as crianças cada espécie plantada, falando de suas importâncias ecológicas para o homem. Um carro com caçamba distribui água em pequenos baldes e galões para o pessoal do Verdejar D’Ajuda. Suados mas com disposição, eles molham uma a uma as arvorezinhas recém colocadas na terra. Erica Munaro a engenheira florestal do grupo, supervisiona o plantio, orientando as crianças nos cuidados com a transferência das mudas para o chão, em como as covas devem ser cavados e como as mudas devem ser enterradas. No final da empreitada, próximo da hora do almoço, o grupo olha com orgulho o trabalho feito. Algumas crianças imaginam como essas árvores estarão quando elas forem adultas. No enorme deserto de incertezas políticas, sociais e ambientais que domina o Brasil no śeculo 21, ao menos um certeza o grupo tem: a de quê sementes foram plantadas no solo, nas mentes e corações das novas gerações, capazes de alavancar um futuro diferente para Arraial D’Ajuda.
Texto: Caio Gabrig Turbay – Geólogo, prof. da Universidade Federal do Sul da Bahia
Fontes:
https://www.aquitemmata.org.br/#/busca/ba/Bahia/Porto%20Seguro
http://www.ceama.mp.ba.gov.br/mata-atlantica.html?id=1353
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